Nº 2529 - Outubro de 2012
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
IN MEMORIAM - Professor Doutor Armando Marques Guedes
 
 
Professor Doutor Armando Marques Guedes
 
Um testemunho
 
O Professor Doutor Armando Manuel de Almeida Marques Guedes nasceu em 25 de Dezembro de 1919, na Foz do Douro, e faleceu em Cascais, em 30 de Setembro de 2012. Não é minha intenção fazer um excurso biográfico da sua enorme actividade como académico e cidadão (nem tal se coadunaria com a minha interpretação dos estatutos da Revista). Pretendo apenas dar um testemunho, referido a quatro momentos, sobre a inestimável acção que desenvolveu em prol da Instituição Militar e sobre aspectos da sua personalidade.
 
Conheci o Professor Marques Guedes nos princípios do ano lectivo de 1973/74, no Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM): eu, recém-chegado de Moçambique, reassumira funções docentes; ele fora nomeado há pouco docente da disciplina de Direito Internacional.
 
Como eu era responsável da área de estudo “Estratégia”, na qual se integrava aquela disciplina, estabelecemos naturalmente uma frequente colaboração. Sabia-o um académico altamente prestigiado e, desde logo, pude apreciar, a par de uma esmerada educação e de um porte distinto, a afabilidade do seu trato, a sua vasta cultura e experiência académica, o rigor dos seus raciocínios e a segurança das suas opiniões. E nas reuniões do Conselho Escolar a sua opinião era sempre escutada com especial atenção, pela justeza e ponderação dos seus comentários, pela fundamentação, clareza e franqueza das suas apreciações e pela sua rápida compreensão de algumas especificidades do ensino militar.
 
No final daquele ano lectivo o IAEM suspendeu as suas actividades académicas, no seguimento da Revolução de Abril. E, embora sem qualquer orientação superior, o Director decidiu que fossem estudadas as prováveis missões futuras do IAEM, os possíveis cursos (tipologia, finalidade, duração e orientação pedagógica) e as bases dos futuros estatutos, à luz da nova situação política e das novas dimensões do País. Para o efeito, nomeou um Grupo de Trabalho, com os poucos docentes remanescentes e que se mantinham colocados no IAEM. Fiz parte desse Grupo de Trabalho, bem como o Professor Marques Guedes (embora acumulasse com outras funções docentes estranhas ao IAEM). Tratava-se, naturalmente, de uma missão difícil, tanto mais que o processo revolucionário foi acelerando e era incerto o futuro modelo político do novo regime. E para o cumprimento da missão foi decisiva a contribuição do Professor Marques Guedes, dada a sua vasta experiência académica, os seus profundos conhecimentos jurídicos e o seu equilíbrio e bom senso na busca de soluções e articulados que garantissem o máximo de flexibilidade. Em meados de 1975 fui chamado para novas funções. Regressei à docência no IAEM, com a reabertura deste no ano lectivo de 1978/79, sob novos estatutos, que muito aproveitaram do projecto elaborado anos antes. E o Professor Marques Guedes passou a ministrar a novel disciplina “Ideologias e Sistemas Políticos”, cujo programa elaborou de raiz. As lições ministradas foram pouco depois editadas  pelo IAEM e tiveram larga procura no meio académico. Entretanto, veio a ser também contratado como docente pelo Instituto Superior Naval de Guerra e pelo recém-criado Instituto de Altos Estudos da Força Aérea.
 
Numa circunstância habitual no mundo militar, passei a seu discente, durante a frequência do Curso Superior de Comando e Direcção. Não impressionava pelo vigor da expressão, pela exuberância ou teatralidade do gesto ou pelo fulgor das imagens. Mas mantinha a atenção da audiência presa pelo fácil e natural fluir dum discurso sem hesitações, pela elegância da linguagem, pelo rigor conceptual, pela justeza cartesiana da estrutura da exposição.E, com a facilidade proporcionada por um ambiente militar que quadrava bem com a sua idiossincrasia de tipo britânico, impressionava pela sua rigorosa gestão do tempo: absoluta pontualidade no início da aula, 40 minutos de exposição e 10  para perguntas e esclarecimento de dúvidas - quase se poderia acertar o relógio...
 
Findo o curso, fui nomeado subdirector do Instituto de Defesa Nacional (IDN). Tive então o privilégio e o prazer de sugerir a nomeação do Professor Marques Guedes como assessor do IDN, para a área do Direito, reforçando um corpo de assessores de elite. Veio a iniciar-se, assim, uma frutuosa colaboração com o IDN, não só como conferencista, mas também através da publicação de alguns ensaios na Revista “Nação e Defesa”, de grande interesse para a Instituição Militar e sobre temas que, até então, dum modo geral não tinham sido objecto, entre nós, de reflexão pública.
 
Anos mais tarde, fui nomeado director do IDN. Cerca de um ano depois, o Professor Marques Guedes deixou de exercer as altas funções de Presidente do Tribunal Constitucional. Como director, vinha procurando intensificar a colaboração com o IDN das personalidades que constituíam o corpo de assessores, no seu período inicial, que não tinham sido exoneradas, mas cuja disponibilidade não vinha tendo, em minha opinião, o devido aproveitamento. E, neste entendimento, solicitei, logo que me foi possível, a colaboração do Professor Marques Guedes, prontamente disponibilizada, tanto mais que, tendo atingido, tempos antes, a idade de reforma, o IDN era um local que lhe era aprazível. Ora, o ministro Fernando Nogueira vinha levando a cabo uma importante reorganização do Ministério da Defesa Nacional (e não só), que implicava uma profunda reformulação dos estatutos do IDN.O Professor Marques Guedes prestou uma excelente colaboração técnica na elaboração do projecto submetido à aprovação superior. E uma convivência e trabalho em comum em proveito da Instituição Militar e da Defesa Nacional que, embora de forma entrecortada, se vinham desenvolvendo há largos anos acabaram por se estreitar significativamente, em termos de amizade e mútuo apreço, durante a viagem de estudo do Curso de Defesa Nacional (CDN) de 1990/91 a ex-países de Leste. E não posso deixar de recordar um episódio significativo ocorrido durante a mesma.
 
Dados os constrangimentos da época, a única instalação que foi possível encontrar, em Praga, para alojamento de tão vasta delegação, durante 3 noites, foi no antigo bairro dos oficiais soviéticos, situado numa colina nos arredores de Praga. Estava então ocupado por famílias checas do médio funcionalismo, em especial quadros ministeriais, que se disponibilizaram para nos acolher, como meio de obterem uma melhoria dos seus rendimentos.O bairro era constituído por conjuntos de pequenas vivendas, em banda contínua: construções uniformes, sóbrias, obedecendo ao duplo espartanismo militar e soviético e com um equipamento modesto e que acusava o desgaste de sucessivos utentes; todavia, satisfatoriamente conservadas e impecavelmente limpas. Fiquei, com o Professor Marques Guedes, numa mesma vivenda, à qual tínhamos de recolher ao cair da noite, devido ao horário dos transportes.
 
A dona da casa nascera entre as duas guerras e descendia de uma importante família da antiga aristocracia rural, cujos bens haviam sido confiscados. Da antiga grandeza restava apenas um notável retrato a óleo, que dominava a sala, e que a fixara num momento de uma adolescência feliz e esplendorosa. Educada, culta, de uma distinção sóbria mas afável e conhecedora do nível dos seus hóspedes, procurou, naturalmente, criar um ambiente acolhedor. E tinha necessidade de falar, por um lado para desabafar junto de estranhos e, por outro, para colher impressões da experiência democrática portuguesa e, talvez, obter argumentos da experiência jurídica do Professor Marques Guedes. E, assim, ao fim de cerca de 5 horas de conversações, ficámos com um quadro vivo da história da Europa Central, no último século, na visão de uma mulher culta e sensível, que a vivera, por vezes de forma extremamente intensa e dramática, e observara acontecimentos e factos sob três regimes substancialmente distintos e que, no dealbar de um quarto e novo regime, encarava, na ponta final da vida, com grande esperança o futuro e a possibilidade de recuperar antigo património, sobretudo a velha casa senhorial, onde gostaria de terminar os seus dias.
E pude confirmar, e admirar em toda a sua plenitude, uma importante faceta da personalidade do Professor Marques Guedes: o seu domínio da difícil arte da conversação, isto é, de manter viva, estimulante, interessante e aprazível uma conversa, através da capacidade de se criar naturalmente uma empatia, de saber ouvir, de dar espaço controlado ao interlocutor, de sugerir subtilmente novos temas ou factos e de formular questões, dúvidas ou comentários oportunos, sagazes e ajustados às expectativas e interesses do interlocutor.
 
Docente durante vários anos nos Institutos Superiores dos 3 Ramos das Forças Armadas (FFAA) e assessor do IDN, o Professor Marques Guedes colaborou na formação de centenas de oficiais dos escalões mais elevados das FFAA e prestou outros importantes serviços à Instituição Militar - que compreendia, admirava e respeitava. Em conformidade, recebeu expressivos louvores, não só dos Directores daqueles Institutos, mas também do Chefe do Estado-Maior de cada Ramo das FFAA, tendo sido condecorado, pelo Exército, com a Medalha de Prata de Serviços Distintos e a Medalha de Ouro D. Afonso Henriques; pela Armada, com a Medalha Naval de 1ª classe e Medalha Vasco da Gama; e, pela Força Aérea, com a Medalha de Mérito Aeronáutico de 1ª classe. Foi ainda agraciado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, pela forma como, durante cerca de sete anos, desempenhou as funções de Presidente do Tribunal Constitucional (o primeiro em tal cargo) e possuía duas condecorações estrangeiras.
 
 
Tenente-general Abel Cabral Couto
 
Tenente-general
Abel Cabral Couto
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2013-01-27
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Tenente-general

Abel Cabral Couto

Nasceu em Mateus, Vila Real, em 11 de Março de 1932, onde fez o curso de liceu que terminou em 1949, com 18 valores.

Cursou Artilharia, na Escola do Exército (1949/1953). Depois fez outros cursos: Geral e Complementar de Estado-Maior, do Instituto de Estudos Militares (IAEM); Emprego de Armas Especiais, na Escola do Exército dos Estados Unidos da América, em Oberamergau e Superior de ­Comando e Direção, do IAEM.

Frequentou o curso de licenciatura em Ciências Físico-Químicas da Faculdade de Ciências de Lisboa.

Atualmente, é general do Exército na situação de reforma.

Professor catedrático convidado do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (desde 1987) e membro do Conselho

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by CMG Armando Dias Correia