Nº 2529 - Outubro de 2012
Pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública
As Capacidades Militares da Nação
General
Gabriel Augusto do Espírito Santo
1. A Constituição da República define que “às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República”, “satisfazer compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte” e que “podem ser incumbidas para colaborar noutras missões”. Incumbências que pressupõem Forças Armadas capazes de desempenharem funções militares (vigiar e alertar, prevenir, dissuadir, proteger e coagir, combatendo). Incumbências constitucionais que orientam as missões das Forças Armadas, distinguindo o que devem fazer e o que podem fazer, não esquecendo que combater pela República, enquanto não for privatizada a guerra, é a missão fundamental das Forças Armadas. Incumbências constitucionais que devem merecer a atenção permanente da política para saber que Forças Armadas a Nação deve ter e pode ter.
 
2. Portugal integra a Aliança Atlântica e pertence à Europa. Duas realidades distintas, mas com áreas de sobreposição no que respeita a segurança e defesa. A Aliança, tendo uma dimensão transatlântica no Atlântico Norte, assegura a defesa coletiva dos seus estados membros, com uma estrutura militar integrada de comandos, forças, infraestruturas e doutrina, que a distingue de outras alianças construídas na História. A Europa, tentando construir uma Política Comum de Segurança e Defesa, tem dado passos tímidos nessa construção, especialmente na vontade de integrar as suas forças armadas, que tem sido estudada e sugerida, e que seria uma tarefa fácil. Ambas advogam a cooperação entre os seus membros para reforço das capacidades próprias. Quando o ambiente estratégico mudou na Europa e para a Aliança Atlântica, no início dos anos noventa do século passado, saber que forças armadas deveriam responder a esse novo ambiente mereceu sério debate entre os estados membros. Em funções, tive oportunidade de participar, como representante militar permanente de Portugal, no Comité Militar da OTAN, entre 1991 e 1994, no debate, contínuo e exaustivo, que tentou responder à pergunta política formulada sobre que forças militares para a Aliança. A resposta foi de que o planeamento dessas forças militares, no novo quadro estratégico, deveria ser orientado pelas missões a desempenhar e abandonar o planeamento orientado pela ameaça como até então tinha seguido, face à ameaça concreta e definida que representava o Pacto de Varsóvia. Do “threat oriented para o mission oriented”, a estrutura de forças passou a falar em capacidades militares da força abandonando o planeamento que buscava o equilíbrio entre navios, divisões ou aviões.
 
A União Europeia, quando decidiu debruçar-se sobre a sua componente militar, e depois de definir alguns objetivos sob a presidência da Finlândia (Helsinki Goals), decidiu seguir também o planeamento orientado pelas missões. Foi durante a presidência de Portugal, no ano 2000, e na primeira reunião de Chefes de Estado-Maior das Forças Armadas dos estados membros, por mim convocada e presidida, que se definiram as capacidades militares que a União deveria procurar atingir e o trabalho foi passado à presidência francesa.
 
Portugal tem seguido este método no seu planeamento da força militar, procurando responder às capacidades militares definidas com adaptações próprias e ajustando progressivamente o seu ciclo de planeamento ao ciclo de planeamento da OTAN. Até agora as Forças Armadas de Portugal, desde Moçambique, em 1993, até ao Afeganistão, e noutras operações que decorrem, têm participado em operações sob a égide das Nações Unidas, da União Europeia ou da OTAN e respondido a outras contingências do interesse exclusivo do Estado português.A segunda incumbência constitucional tem sido cumprida.
 
3. Anos passados, os enquadramentos geopolíticos e estratégicos globais e regionais evoluíram, com novos atores, o renascer de nacionalismos, a nova importância de mares interiores, como Índico e o Mediterrâneo e outras variáveis. Novas ameaças à segurança global, diversas e fluidas, apareceram. Sobre elas, que são matéria dada e aprendida, retenhamos uma ideia para o planeamento militar: cada ameaça contem em si um risco, que se avalia pelo produto da sua probabilidade de ocorrência pelos efeitos que pode produzir.
 
Os enquadramentos internos também evoluíram para o planeamento militar. Nas novas formas de obtenção de recursos humanos, nas novas tecnologias e em mudança acelerada, nas dificuldades financeiras que tem restringido progressivamente os orçamentos da defesa e que têm conduzido, sob o pretexto de uma adaptação desejada, ao caminho fácil da redução progressiva, nos custos crescentes para manter a força militar, na sociedade em profunda mudança, nas populações mais atentas ao seu estilo de vida do que a valores como a segurança. É uma realidade dizer que na decisão política de cada Estado sobre a força militar a manter pesam hoje mais os fatores de custo homem/dia e dos empregos que as indústrias de defesa (para quem as tem) podem oferecer do que os riscos que pode ter de enfrentar. Tentam justificar-se as Forças Armadas mais pelo que podem fazer do que pelo que devem fazer.
 
Sobre estes enquadramentos pesa ainda o que hoje a política pensa sobre a intervenção da força militar. Entendia-se que a força militar quando intervinha num conflito era para ter sucesso, que se traduzia em atingir os objetivos fixados. Hoje, o sucesso também se traduz por alcançar os objetivos fixados, definido agora pelo end state a alcançar, mas desde que as baixas próprias sejam mínimas e que as mortes de não combatentes ou danos colaterais sejam mantidas a níveis admissíveis.
 
4. Definir a força militar e as suas capacidades militares, para estados de recursos escassos e para opiniões públicas ainda dominadas pelo sentimento de “better red than dead“, constitui hoje tarefa ingrata para planeadores militares e decisores políticos. O espectro do conflito alargou-se (ações humanitárias, operações de estabilização e de apoio, contingências de pequena escala, guerras de Teatro ou guerra nuclear) e o nível de coação a atingir, que obriga a combater, pode variar em intensidade. Há que procurar soluções, materializadas em capacidades da força, que cubram todo o espectro do conflito e possam variar o nível de coação a aplicar. Estabelecer prioridades nas capacidades militares a manter, dando prioridade às que importam para as incumbências do dever e secundarizando as que importam para a incumbência do poder, constituem dificuldades para a decisão, pela incerteza do futuro, pelos recursos financeiros disponíveis, pela atenção das opiniões públicas e pelos interesses corporativos dos ramos das Forças Armadas e dos seus lóbis organizados.
 
Estudos recentes desenvolvidos pela RAND Co., nos EUA, com base em trabalhos científicos de simulação e lições aprendidas em conflitos passados ou em curso, chegaram à conclusão que a mobilidade da força terrestre e os fogos à distância são as capacidades que melhor satisfazem o espectro do conflito e o nível de coação a impor, em conflitos atuais ou futuros, pelo que devem merecer a prioridade no planeamento de forças a manter e desenvolver. Capacidades que serão melhor conseguidas na força conjunta que os três ramos distintos da força armada podem integrar. Capacidades que representam a sua exclusividade de ser na função de combater. Outras missões da força militar (o vigiar e alertar, o prevenir, o dissuadir e o proteger) podem ser partilhadas ou repartidas com outros que não detêm a condição militar.
 
A mobilidade da força terrestre pode conseguir-se aligeirando a força (repensando o que é a unidade tática fundamental e como deve ser organizada para o combate terrestre) e melhorando os seus meios de mobilidade tática nos ambientes onde for chamada a operar. Os fogos à distância podem conseguir-se por plataformas à distância (navios, aviões, mísseis ou canhões), agora com maior precisão, dadas as novas capacidades de aquisição de objetivos e munições “inteligentes” com acrescidos potenciais destruidores. As possibilidades das tecnologias vão tornando obsoleto o que ontem era novidade, mas não deve esquecer-se que todos os conflitos foram combatidos com as armas disponíveis e não com as desejáveis.
 
5. Na definição de uma política de defesa nacional e dos aspetos fundamentais da estratégia global do Estado adotada para a consecução dos objetivos da política de defesa nacional (Conceito Estratégico de Defesa Nacional, CEDN) tem de começar-se pelas capacidades que as Forças Armadas devem e podem ter, na perspectiva das incumbências constitucionais e da sua função primária que é combater. Capacidades que serão encontradas nos homens e mulheres que as servem e que devem ser recrutados, educados, preparados e treinados para combaterem e que à partida devem ser devidamente informados sobre quais os deveres e direitos de assumirem a condição militar, onde sobressai o dever de combater, quando exigido. Capacidades que garantam, com os riscos admitidos, a defesa militar da República combatendo. Capacidades que permitam a satisfação dos compromissos internacionais, depois de avaliados riscos e custos. Capacidades que garantam poder evoluir rapidamente para a utilização de armamentos e equipamentos mais sofisticados (eles aparecerão) em tempos de crise ou guerra, ao lado de aliados e amigos. Capacidades para crescer para maiores efetivos em tempos de crise ou guerra, no quadro estratégico de incerteza que se vive. Capacidades que terão de ser eficazes, sustentáveis e apoiadas pela população portuguesa, num quadro financeiro e económico difícil, como o que vive a Nação.
 
Quando a tempestade é grande discute-se como remar. Comecemos por remar “à barqueiro”.
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2013-01-27
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General

Gabriel Augusto do Espírito Santo

Nasceu em Bragança em 8 de Outubro de 1935.

É General do Exército, na situação de Reforma desde o ano 2000, depois de ter servido nas Forças Armadas Portuguesas durante 49 anos.

Além de Tirocínios e Estágios na sua Arma de origem possui os Cursos da Escola do Exército (Artilharia), Curso Complementar de Estado-Maior e Curso Superior de Comando e Direcção (Instituto de Altos Estudos Militares), Curso de Comando e Estado-Maior (Brasil) e o Curso do Colégio de Defesa Nato (Roma).

Falecido em 17 de outubro de 2014.

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by COM Armando Dias Correia